Talvez o passado seja a alma do tempo.Ah, dantes, lá muito atrás, ainda antes de me darem
o primeiro relógio, mais cedo do que a puberdade, é que eu
era feliz. Tinha berlindes de vidro e chupava pirolitos de mel.
tinha livros de quadradinhos e cromos para a troca.
Um lenço bordado com o meu nome.Carros de rolamentos
para descer a avenida. e depois do cinema, a minha rua
armava-se toda em Kung-fu.
Na minha infância o tempo sabia a leite quente. A Primavera
nascia nos ninhos dos pássaros e quando voavam, eles
deixavam cair o verde tenro das asas sobre os campos
- e sobre o meu quintal também - e no Outono as folhas
todas caíam, mas eu não. E as pardelhas guiavam o Inverno triste ao longo das
ribeiras enfeitadas de hortelã.
No Verão alguém fazia o mar mais os rajás de chocolate.
Nada me dividia. Nem havia destino. Só sabia em que
dia fazia anos porque o bolo era doce e os amigos
também. E não me preocupava que no aniversário seguinte já
houvesse mais uma vela. ( O calendário era a fotografia de
uma mulher nua, onde o meu tio apontava os números de telefone.)
Não tinha que estar a horas em lado nenhum. Era a fome
e era a sede e era o sono que me levavam, tal como levam
um cão ou um gato. Não tinha conhecimento do tempo e
aparentemente também ele não me conhecia a mim. Era
um mundo perfeito. E eu que fiquei tão contente quando
me deram o primeiro relógio! Nesse dia, tonto de horas,
aprendi o sentido dos ponteiros, achei o tempo e perdi-me.
Era um relógio mecânico e se calhar dei-lhe corda em
demasia.
Talvez então o presente seja o corpo do tempo.
Digo-o porque a cada instante os pulmões expiram ais e
suspiros. Porque cada hora não é mais do que o coração a
bombear a rotina.
Porque cada dia parece o sangue a ir e voltar sempre ao
mesmo sítio.
Se não tivemos cuidado, o presente não é mais do que
um boneco feito de ossos.
E a carne apenas o lugar onde mora a dor da solidão.
Se não nos dermos conta, o malandro do tempo faz de
nós um fósforo, palha miúda, uma centelha que é já cinza
quando cai, uma bicha-de-rabear que se apaga depois
de dar duas ou três voltas caprichosas no largo da nossa vida.
E se nos atrevermos a pôr a nossa existência junto ao
peito, às vezes vemos que tudo o que fizemos e sonhámos foi
fumo que tentámos prender no céu.
O presente, esse momento de estar a ser, arde como um
cigarro que se fuma ao frio.
Vitor Encarnação in à espera das andorinhas
quinta-feira, outubro 27, 2005
O tempo arde demasiado depressa..
Postado por
Unknown
às
27.10.05
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2 comentários:
pois é...o pior é quando deixamos de fumar.então o tempo passa a ser a real percepção dos 60 minutos. nem mais nem menos. passamos a viver e a não sonhar.
come chocolates, pequena, come chocolates...
nunca te disseram que os mesmos são afrodisíacos?
isso nunca Fernando Pessoa se apercebeu. e foi pena!
devo ter-me passado dos carretos quando tal escrevi...em momentos opiáceos não dá para mais. ou dará? pergunta ao Fernando.... ( ao Pessoa, claro! )
um beijo!
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