quinta-feira, outubro 27, 2005

O tempo arde demasiado depressa..


Talvez o passado seja a alma do tempo.

Ah, dantes, lá muito atrás, ainda antes de me darem

o primeiro relógio, mais cedo do que a puberdade, é que eu

era feliz. Tinha berlindes de vidro e chupava pirolitos de mel.

tinha livros de quadradinhos e cromos para a troca.

Um lenço bordado com o meu nome.Carros de rolamentos

para descer a avenida. e depois do cinema, a minha rua

armava-se toda em Kung-fu.

Na minha infância o tempo sabia a leite quente. A Primavera

nascia nos ninhos dos pássaros e quando voavam, eles

deixavam cair o verde tenro das asas sobre os campos

- e sobre o meu quintal também - e no Outono as folhas

todas caíam, mas eu não. E as pardelhas guiavam o Inverno triste ao longo das

ribeiras enfeitadas de hortelã.

No Verão alguém fazia o mar mais os rajás de chocolate.

Nada me dividia. Nem havia destino. Só sabia em que

dia fazia anos porque o bolo era doce e os amigos

também. E não me preocupava que no aniversário seguinte já

houvesse mais uma vela. ( O calendário era a fotografia de

uma mulher nua, onde o meu tio apontava os números de telefone.)

Não tinha que estar a horas em lado nenhum. Era a fome

e era a sede e era o sono que me levavam, tal como levam

um cão ou um gato. Não tinha conhecimento do tempo e

aparentemente também ele não me conhecia a mim. Era

um mundo perfeito. E eu que fiquei tão contente quando

me deram o primeiro relógio! Nesse dia, tonto de horas,

aprendi o sentido dos ponteiros, achei o tempo e perdi-me.

Era um relógio mecânico e se calhar dei-lhe corda em

demasia.

Talvez então o presente seja o corpo do tempo.

Digo-o porque a cada instante os pulmões expiram ais e

suspiros. Porque cada hora não é mais do que o coração a

bombear a rotina.

Porque cada dia parece o sangue a ir e voltar sempre ao

mesmo sítio.

Se não tivemos cuidado, o presente não é mais do que

um boneco feito de ossos.

E a carne apenas o lugar onde mora a dor da solidão.

Se não nos dermos conta, o malandro do tempo faz de

nós um fósforo, palha miúda, uma centelha que é já cinza

quando cai, uma bicha-de-rabear que se apaga depois

de dar duas ou três voltas caprichosas no largo da nossa vida.

E se nos atrevermos a pôr a nossa existência junto ao

peito, às vezes vemos que tudo o que fizemos e sonhámos foi

fumo que tentámos prender no céu.

O presente, esse momento de estar a ser, arde como um

cigarro que se fuma ao frio.

Vitor Encarnação in à espera das andorinhas

...... Porta Encantada

Foto: de Ricardo Freire

A Carta

Bem-vinda a carta! à chegada mostra

o seu rosto lindo, todo felicidade,
veste-a a túnica de que mais se gosta
ostentando a festa da fidelidade.


não paro de olhá-la! de desvanecido,


minha mão lhe toca com veneração


dou-lhe o meu afago depois de a ter lido


ponho nela o beijo do meu coração.


Ibn Habîb
(Silves, n?;m.1288- antologia o meu coração é árabe, org. Adalberto Alves)

O Amor

o amor é feito de prazer

então vive de beijos e abraços.

depois chega a hora de sofrer:

palavras amargas seguem nossos passos

e nos apartemos, como quem vai morrer.

mas ah! se no amor não mais acreditasse

melhor fora a minha vida se acabasse!



Ibn Badrûn (Silves, séc XII-XIII) Antologia O meu coração é árabe, org por Adalberto Alves)

O Encontro

cruzei-me com quem me dava


a languidez do amor.

a saudação lhe dei pela palavra.

porque a afeição se acabasse

não sentia o seu calor

e altaneiro me evitava,

mas deixou-me que o beijasse:
foi como daquela vez
que avistando a claridade,
só querendo lume, moisés

que falou com a divindade.

Abûl-l-Qâsim Ibn Al-milh ( Silves n?:m1107) - in antologia O meu coração é árabe - org por Adalberto Alves,1999









......

Fotografia de António Matias

domingo, outubro 23, 2005

Passagem

Ó terra adormecida na sombra
silenciosa!



Cala, cala os
nomes que são areia e cor



mas não a
presentida



falha aberta
sobre o mar. Que o poema anule



tudo o que não
for passagem ou frémito do ar



e nenhum outro
apoio além do muro sombrio.



E entre os
signos e as coisas, entre as pedras,



será uma outra
casa ou só uma porta



que se ergue
tranquila e transparente



no repouso de um
instante entre dois mundos?



Todos os
caminhos agora são imóveis



e só um sopro
modela a lâmpada de argila



enquanto se
inclina a mão que reflecte



o movimento das
nuvens e dos barcos



que não são mais
do que o silêncio nas suas formas nuas.



António Ramos Rosa

....

quinta-feira, outubro 20, 2005

Outono

Por causa de um pacto ancestral com a curvatura da terra, o sol entrega-se mais cedo ao horizonte e nele repousa, deita-se atrás da noite, para que a lua possa viver mais um pouco.
É este o acordo selado ao crepúsculo. É esta a semente do Outono.


E as noites fazem-se gordas, mais fundas.prenhes de escuridão, deitam do ventre manhãs de geadas que depositam à nossa porta.
O vento que vem agarrado ao ar traz um cheiro a frio e sabe-se lá se o sopro que se ouve na rua e nas gretas das janelas não será o lamento do verão que fechamos nas gavetas camisolas de manga curta.

E as formigas são carteiros alados pousando no chão do Outono , trazendo a certeza de chuva.
De onde vêm formigas, estas formigas etéreas? Quem foi que pôs no céu estes bichos de terra e carreiros? Lá fora, por cima das terras lavradas, o firmamento forra-se de cinzento graúdo?
Quem foi foi que pôs no céu estes bichos de terra e carreiros? Lá fora, por cima das terras lavradas, o firmamento forra-se de cinzento graúdo. Chama a si as nuvens e junta-as num tecto de bronze e algodão que rouba a sombra às pessoas e às coisas todas. E quando as nuvens se tocam muito ou tudo, quando se excitam de céu e altura, abrem-se em água, às vezes pouca, às vezes toda. E cá em baixo, a terra que é homem e mulher ao mesmo tempo, de tão contente que está recebe a água nova e leva-a para o seu leito, por cada poro, por cada rego, inundando-se.

E a chuva como que bebe o pó? Torna-o líquido, incapaz de voar. Prende-o à terra se a chuva for pouca, solta-o na corrente de uma ribeira que finalmente se veste de àgua.
As folhas caídas são um vestido amarrotado que o vento, com as suas mãos inquietas e descobridoras, tira do corpo rijo das àrvores em dias e noites de perdição. E nesse manto de folhas secas, debaixo dos meus pés, crepita e estala a minha infância toda. Como se um vento ao contrário me aquecesse a vida. E assim eu tivesse de novo na boca, nos olhos e nas mãos, os primeiros sabores de tudo: das castanhas assadas no cansaço do fogo - a cinza é o cansaço do fogo -, da planície que arrefece, da samarra que me envolve com uma ternura.

E cada folha é também um bocado de tempo que se despegou para sempre.Até ser pó como serei quando todos os Outonos acabarem.
Há um castanho imenso entornado sobre o mundo.
É a cor do silêncio, acho eu.
E as formigas, as normais, aquelas que nunca provaram o céu, cumprem a sua fatalidade. De pés bem assentes na terra. Algumas delas quem lhes dera ter asas!
E há uma noite em que o tempo entontece porque lhe repetem uma hora. Mas os ponteiros do relógio não são os braços nem o coração do destino. O tempo sabe que não pode ser o que já foi. O que os olhos disseram está dito. Pronto acabou-se.

O Outono faz-me cair para dentro. Empurra-me para mim.
Talvez me leve para o lado da suave mágoa. Da névoa.
Dos maiores ventos.
O outono despe-me mais todas as palavras que digo.
Nada faço para me opor. Como uma árvore.

Vitor Encarnação in à espera das andorinhas


segunda-feira, outubro 03, 2005

.......


Foto: Luís Garção Nunes

Espelho

Sou prata e exacto. eu não prejulgo.



o que vejo engulo de imediato


Tal qual é, sem me embaçar de amor ou desgosto


Não sou cruel, tão somente voraz-


O olho de um deusinho, de quatro cantos.


O tempo todo reflito sobre a parede em frente.


É rosa, com manchas. Fitei-a tanto


Que a sinto parte do meu coração. Mas vacila


Faces e escuridão insistem em nos separar.



Agora sou lago. Uma mulher se inclina para mim,


Buscando em domínios meus o que realmente é.


Mas logo se volta para aqueles farsantes, o lustro e a lua.


Vejo as suas costas e as reflito fielmente.


Ela me paga em choro, e agitação de mãos.


Sou importante para ela . Ela vai e vem.


A cada manhã sua face reveza com a escuridão.


Em mim afogou uma menina, e em mim uma velha


salta sobre ela dia após dia como um peixe horrendo.



Silvia Plath

domingo, outubro 02, 2005

....soul

nocturno


conhecer amar os outros



reconciliou-me comigo mesmo




estou fascinado pela beleza do mundo



que cor dou ao ar



que sabor tem a àgua



as pequenas coisas



todas as pessoas



o teu nome sobre mim inscrito



o encantamento mais profundo



vive longe no canto secreto da vida



é preciso descobri-lo lentamente



deixá-lo sair transportá-lo ao colo



como o que é frágil



um tesouro



todos os momentos quando bem vistos



têm tudo ou quase tudo



até mistério




o que podemos sentir para se ser feliz






deixa-me sentar ao teu lado



mesmo que não aconteça nada



isso é já um começo



o gosto de acreditar no outro



há pedaços que só se colam assim



memórias que crescem então




como ramos de árvores talvez



sabes, as noites que passamos em claro



depois de não saber que fazer aos dias



têm iluminadas as estrelas.... constelações...



(autor desconhecido)

Silêncio...



No Silencio das palavras


É no silencio das palavras

Que procuro encontrar respostas

Sentidos das coisas que não entendo...


É no silencio das palavras

Que descanso da tormenta

Que é viver em constante procura


É no silencio das palavras

Que te amo na ânsia de ser amada

Que te quero na esperança de ser querida...


É no silencio das palavras

Talvez daquelas que nunca direi

Que fica a mulher que se esconde...


É no silencio das palavras que habita

A vontade de ser, de viver, de sentir

Que tudo vale a pena...


É no silencio das palavras

Que me entrego com ternura

Que me dou por inteiro...


É por fim no silencio das palavras

No murmúrio do mar, som de um suspiro

Que te quererei para sempre!

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(Cristina Bernardo)
Fotografia Sofia Miranda